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Elegância Brasileira

12 de julho de 2017

A obra de Chichico Alkmim é de grande importância para a pesquisa sobre a indumentária e a moda no Brasil.[1]Dentre todas as possibilidades de entrada que suas fotografias oferecem, fica patente aquela que diz respeito à materialização visual de uma ideia de elegância brasileira, um modo de vestir propriamente brasileiro. Nesse sentido, deixo de lado o caráter estrutural da moda, aquele que diz respeito às grades sociais e econômicas que sustentam o sistema da moda, e uso o termo como sinônimo de estilo, ou seja, “a construção individual de uma estética baseada não apenas no que você está vestindo, mas em como você o veste”, nas palavras do antropólogo inglês Daniel Miller.[2]

A exposição Chichico Alkmim, fotógrafo, inaugurada em maio no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro, com curadoria de Eucanaã Ferraz, ocupa generosamente oito salas de exibição. As ampliações dos retratos dão aspecto de magia a certos ambientes da casa, já feérica pela beleza da arquitetura envidraçada. Em muitas reproduções a opção da curadoria foi exibir as fotografias em pôsteres, e é como se pudéssemos interagir e tocar naquelas figuras. Lembro de Walter Benjamim na “Pequena história da fotografia”, quando afirma que a fotografia permite que vejamos “mundos de imagens habitando as coisas mais minúsculas, suficientemente ocultas e significativas para encontrarem refúgio nos sonhos diurnos, e que agora, tornando-se grandes e formuláveis, mostram que a diferença entre a técnica e a magia é uma variável totalmente histórica”.[3]

Digo que as fotografias de Chichico Alkmim, também publicadas no catálogo da mostra, são de suma importância para o desenvolvimento da pesquisa sobre a indumentária brasileira porque, além de oferecerem uma vasta quantidade de retratos e estarem circunscritas à temporalidade da primeira metade do século XX e à cidade de Diamantina, todas as classes sociais estão presentes, o que é uma grande vantagem para o estudo da indumentária brasileira. A obra de Chichico cobre um conjunto diverso de atividades, idades, e as três categorias de vestuário estabelecidas pelo International Council of Museums (ICOM): as indumentárias militar, eclesiástica e civil. Dos anos 1910 até meados da década de 1950, por meio dos retratos de Chichico temos acesso às modas feminina e masculina, aos trajes infantis, às fantasias de carnaval, à indumentária eclesiástica, feminina e masculina, aos uniformes escolares, à indumentária militar, ao traje mortuário dos anjinhos, e às roupas usadas em cerimônias religiosas, como os casamentos, as procissões, as primeiras-comunhões.

Mas se tais retratos oferecem uma vasta gama de evidências visuais[4] relacionadas à indumentária, à moda e às práticas vestimentares, é necessário, a despeito do fascínio que as imagens exercem sobre nós, que sejamos minimamente cautelosos ao utilizá-las como fonte de pesquisa para a construção da historiografia da moda brasileira.

Levemos em consideração, por exemplo, as práticas da atividade fotográfica na primeira metade do século XX, tanto em relação à técnica como ao papel do fotógrafo na composição da cena e, também, aos significados sociais e simbólicos de ir ao estúdio fotográfico e ser retratado. Comecemos pelo segundo tópico, que Eucanaã Ferraz, no texto de abertura do catálogo da exposição, esclarece:

Quanto à ação do fotógrafo na construção das cenas, se não há dúvida sobre isso, cabe ponderar certos aspectos, como a suposição de que emprestava roupas para a clientela apresentar-se dignamente. As fotografias que flagram na rua homens de colete, terno, gravata e chapéu, mulheres com saias longas, crianças trajadas quase com a formalidade dos adultos, mas tantas vezes descalças, mostram um vestuário comum, uma elegância que não esconde a pobreza, o gasto, o tosco. Parece fácil desmentir a hipótese do empréstimo, que talvez acontecesse excepcionalmente. Mas o conjunto de imagens também faz ver que havia alguns pequenos elementos de figurino cujo propósito era, digamos, mais técnico, um empréstimo estratégico, portanto, como a gola rendada que se sobrepunha ao vestido, decerto com a finalidade de fazer sobressair o rosto, iluminando-o por contraste.[5] 

Sobre a relação de Chichico Alkmim com a técnica da fotografia – e todo o aparato de materiais disponível ao fotógrafo no desenrolar de seus anos de atividade – parece que todos concordam que era um exímio profissional. “A primeira coisa que salta aos olhos nos retratos de Chichico Alkmim é a perfeição técnica”, constata Pedro Karp Vasquez logo no início de seu texto publicado no catálogo.[6] Ou, como afirma Eucanaã, “as imagens produzidas por Chichico Alkmim (…) deixam patente seu conhecimento dos recursos técnicos, seu domínio do métier”.[7] E é interessante observar que ao longo de quarenta anos de atividade profissional Chichico manteve-se fiel à sua câmera de fole e aos negativos de vidro, mesmo quando aparelhos mais modernos e negativos de acetato já estavam largamente disponíveis. (…) Cabe registrar, porém, que Chichico se manteve sempre informado do que se passava em seu métier, desde os manuais e catálogos de venda de utensílios até as revistas que anunciavam as novidades do mundo da fotografia.[8] Algumas dessas revistas e desses manuais podem ser vistos na exposição, na tocante sala “Museu de bolso”, assim como fotografias da época, reveladas por Chichico, e outros objetos ligados ao seu trabalho.

Ainda em relação às práticas da atividade fotográfica nos anos iniciais do século XX, é evidente, nas imagens produzidas por Chichico Alkmim, a proximidade que se estabelecia entre o fotógrafo e o retratado. Chichico foi o primeiro a estabelecer um estúdio fotográfico de longa permanência em Diamantina.[9] Não é difícil imaginar o quão importante era – simbolicamente, socialmente – ser fotografado. A princípio, podemos pensar que não havia naturalidade nesse ato. É até comovente observar, na fotografia que está na sala “O ateliê lá fora”, como algumas mulheres enlaçam as mãos no momento registrado, numa atitude engraçada que parece evocar certa proteção contra algum efeito mágico da câmera fotográfica. Desejo de gravar uma relação de cumplicidade? Medo de serem tragadas pela magia da câmera? São infinitas as narrativas que podemos contar sobre as fotografias de Chichico Alkmim. Aliás, essa é uma das fotos mais antigas publicadas no catálogo, deve ser da década de 1910, e uma das mais interessantes em termos de análise da indumentária.

 

Diamantina, MG, c. década de 1910 (Chichico Alkmim/Acervo IMS)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Perfeitamente enquadradas, vemos pouco mais de sessenta pessoas, homens, mulheres, crianças, jovens, de diferentes classes sociais. Também estão incluídos aí três homens com uniformes militares. As pessoas parecem dispostas de modo organizado por faixa etária e gênero. À frente da composição, crianças e mulheres sentadas. Atrás, de pé, homens, jovens e adultos, e apenas três mocinhas adolescentes. Todos os homens estão de chapéu, inclusive os jovens e os pobres. Por que sabemos que há pobres? Porque há uma diferença visual grande entre as roupas. Os abastados vestem terno (paletó, calça e colete), gravata, colarinhos altos, e suas roupas tendem a ser mais escuras e lisas. Os mais simples não usam colete e suas roupas são listradas, ou com estampa xadrez, e um tanto amarrotadas. Provavelmente por conta do tecido, que com certeza não era a lã usada pela elite de Diamantina. Há uma variedade deliciosa de chapéus, tanto em relação à forma como ao material. Fedoras, homburgs, chapéus de copa baixa, chapéus de palha e de feltro. É divertido o gaiato que aponta o amigo fumante, à esquerda, os dois muito elegantes. Ou os dois homens sentados nos troncos de madeira, acima do grupo, absolutamente à vontade.

As mulheres, em menor número, têm os corpos cobertos por saias longas, camisas de manga comprida, ou três quartos, golas e algumas usam aventais. Suas indumentárias aparentam ser mais equalizadas do que as masculinas. A dupla de mãos dadas (que comentei antes) está bem ao centro da fotografia. Aparentemente, outras duas mulheres têm as mãos unidas, ao lado da senhora vestida de preto, depois da primeira dupla, à direita.

Falávamos da relação das pessoas com a fotografia, e daquela que se estabelecia entre o fotógrafo e os retratados no início do século XX. Pedro Karp Vasquez ressalta que um grande atributo das fotografias de Chichico Alkmim é a cumplicidade que o mineiro estabelecia com seus modelos, deixando-os agir com naturalidade. É inequívoco o lugar privilegiado da indumentária em suas fotografias, seja por conta das necessidades técnicas, ou pelo desejo de fotografar as pessoas em seus melhores momentos. É como se os modelos do fotógrafo mineiro tivessem sido flagrados num momento de total consonância entre eles e sua indumentária. Voltando à ideia de Daniel Miller, nesse sentido não importa o que se veste, mas o modo de vestir. Do conjunto dessas construções individuais podemos depreender aquilo que chamamos de indumentária brasileira.

O próprio Chichico Alkmim foi um sujeito muito elegante, um verdadeiro gentleman, como foi chamado no catálogo por Pedro Karp Vasquez. Quando aparece fotografado, vemos uma figura requintada, vestida com extremo bom gosto, de acordo com o padrão formal masculino vigente. No retrato abaixo, a elegância do corte do paletó de lã combina perfeitamente com o colete, a gravata e o colarinho alto e engomado – provavelmente removível, como era o hábito na época – todos claros, sobre a camisa listrada. O alfinete de pérola da gravata e a rosa branca são um charme a mais, e o bolso em diagonal do paletó é a prova da alta qualidade do alfaiate.

 

Chichico Alkmim fotografado por sua esposa, Miquita. Diamantina, MG, década de 1920 (Chichico Alkmim/Acervo IMS)

 

Para aqueles que se interessam pela roupa e pela moda, para pesquisadores e criadores do campo do vestuário, as fotografias de Chichico Alkmim são um deleite para os olhos e oferecem inúmeras possibilidades de pesquisa. Por terem sido realizadas na primeira metade do século XX, registraram um momento da história em que os hábitos vestimentares eram mais rígidos e normativos, antes da virada da informalidade da moda, ocorrida nos anos 1960, motivada pelo consumo dos jovens, pela ascendência do estilo dos músicos, pelas reivindicações por sociedades mais justas e igualitárias, pela difusão do pronto para vestir e uma série de outros fatores. O segredo das roupas registradas nas fotografias de Chichico parece que se revela aos poucos, reside nos detalhes. O conjunto é muito tocante, mas o olhar atento e minucioso torna a obra de Chichico Alkmim ainda mais delicada e emocionante.

É um prazer se aventurar pela imensidão de detalhes que suas fotografias nos oferecem. Numa das fotos mais impactantes da exposição, localizada na primeira sala, intitulada “O ateliê é o mundo” – aquela em que vemos Miquita, a mulher de Chichico, e uma menina ajudante no extracampo –, a abertura na parte interna da manga da camisa da senhora, talvez para que lhe desse mais mobilidade; noutra fotografia, os duques – conjuntos de paletós e calças feitos do mesmo tecido – impecavelmente cortados e modelados; o luxo e a sobriedade da indumentária eclesiástica do bispo dom Joaquim; a gravata de tricô do homem mais elegante e charmoso da exposição, eleito o anfitrião da mostra;[10] o decote em V, o recorte, na altura do colo, e as mangas bufantes do vestido quadriculado da moça negra cujo retrato está, quase em tamanho real, na primeira sala da exposição; o broche e o laço no decote, a blusa de petit-pois e os botões geométricos do sobretudo, além, é claro, da sombrinha listrada de outra mulher, uma jovem senhora, também exposta na primeira sala, com reproduções em grandes formatos. Os pneus vazios da bicicleta, que acaba funcionando como um acessório; o elegantíssimo terno de lã bem ajustado do janota e as pequenas espirais da estampa da sua gravata. Até mesmo nas fotografias funcionais, a gola desencontrada, arrematada pelo broche, de uma senhora, ou o paletó de linho claro de um rapaz.

 

Diamantina, MG, c. década de 1920 (Chichico Alkmim/Acervo IMS)

Vejamos as combinações de diferentes texturas, estampas e materiais, sempre elegantes. Na fotografia, à mostra na sala “O ateliê lá fora”, em que há um grupo de homens negros e mestiços, quatro sentados à frente e três de pé, atrás, a mistura de diferentes listras da camisa e do paletó com a gravata de petit-pois do homem sentado à direita. Ou, num exemplo em que Chichico utilizou o mesmo negativo para realizar mais de uma fotografia (reunidas na sala “Nosso rosto”), normalmente de documento, no moço à direita, a combinação, elegante e surpreendente, da camisa quadriculada com a gravata estampada, o colete (ou suéter) de tricô, de barra sanfonada, e o lenço de renda no bolso do paletó. Compare esse rapaz com o outro à esquerda, vestido de modo mais severo, mais grave, sem a mistura de elementos do arranjo do moço ao seu lado. E ainda, a combinação do lenço, que cobre os cabelos muito brancos da senhora, com o xale, a estampa miúda, as listras e a renda por cima do patte.

 

Diamantina, MG, c. década de 1930 (Chichico Alkmim/Acervo IMS)

Além disso, botas, borzeguins, sapatos femininos de bico fino, cadarços de tricô, meias listradas e quadriculadas, gravatas usadas à moda da época, flores no cabelo, gravatas borboleta, vestidos de noiva, nervuras das camisas, o estilo garçonne, bolsas, estampas miúdas, chapéus de palha, bengalas, encantadoras fantasias de carnaval.

Outro exemplo da riqueza dos detalhes na obra de Chichico Alkmim é a fotografia, de 1924, da Praça Antônio Eulálio, que está no espaço do corredor, intitulado “Diamantina”.

 

Autobonde; o fotógrafo Assis Horta e dois de seus irmãos aparecem na parte traseira do veículo. Diamantina, MG, 1924 (Chichico Alkmim/Acervo IMS)

 

As crianças ocupam o primeiro plano da cena. É claro que não podemos deixar de mencionar o rapaz de chapéu palheta no canto esquerdo da foto, com o corpo enviesado, olhando para a outra esquina, ou a mulher sentada no autobonde, essa que não olha para a câmera, cujas anáguas parecem ainda mais claras sobre as meias pretas.

Mas, reparem no menino ao fundo, à esquerda, numa pose egípcia, com as duas mãos nos bolsos do paletó; na metade de um corpinho descalço escondido atrás do rapaz de palheta; nos três garotos ao centro da foto, mais à direita, que reproduzem as normas do vestir masculino do início do século XX.

Até o final da década de 1950, a roupa infantil, mesmo que já apresente algumas características próprias, como a variação da altura das calças de acordo com a idade, não se afasta totalmente do vestuário adulto. O menino de conjunto de linho branco, colarinho pontudo, usa um moderno par de sapatos com cadarço e meia. Adolf Loos, no final do século XIX, já dissera que os sapatos com cadarço dominariam o século XX. O rapazinho ao seu lado está elegante de chapéu fedora, camisa branca, gravata e paletó escuros, colete e calça de cores claras, meias e borzeguins. E o pequeno entregador, descalço, embora esteja de chapéu, não pertence à mesma classe social dos outros dois, como atestam suas roupas amarrotadas, aparentemente menores do que o sujeito que as usa.

No Brasil colonial, índios, negros e mestiços andavam descalços. O uso dos sapatos era tão raro no Rio de Janeiro no início do século XIX que Debret mal pode acreditar no número considerável de sapatarias, todas cheias de operários, numa cidade em que os cinco sextos da população andam descalços. Sabemos que nas ruas cobertas de capistranas da velha Diamantina, era prática usar somente um pé calçado, quase sempre para economizar o outro par do sapato. Ter os pés descalços ou vestidos, portanto, era um importante traço de classe.

É por isso que o curinga dessa fotografia é o mocinho de pé no autobonde, no canto esquerdo. É preciso olhar com cuidado para perceber o segredo dessa pequena figura séria, vestida de jaqueta e calças curtas de risca de giz, colarinho branco – um tanto mal-ajambrado –, e chapéu modelo esportivo. A maravilha desse garoto está na combinação do pé calçado com modernos sapatos de cadarço e meia, e o pé descalço, em que grandes dedos transbordam para fora dos limites do autobonde. O pé descalço desse molequinho, em contraste com sua aparência posuda, é, assim, um ponto de articulação entre a ordem da hierarquia e a desordem da indisciplina, entre o mundo enrijecido das convenções sociais e o mundo pululante, primorosamente infantil, da liberdade.

 

Família Mata Machado. Ao centro, de óculos, Aires da Mata Machado Filho. Diamantina, MG, c. década de 1920(Chichico Alkmim/Acervo IMS)

 

Diamantina, MG, c. década de 1920 (Chichico Alkmim/Acervo IMS)

 

Há muitas imagens que retratam o traje infantil na obra de Chichico Alkmim. O par de fotos que pode ser visto na sala “Evocação” é imperdível. Ali é possível ver os grandes laçarotes que serviam tanto para o penteado das meninas como para a gravata dos meninos, ou o hábito de vestir as crianças com roupas iguais. As fotografias dos uniformes escolares são, também, fontes de pesquisa ainda pouco estudadas. A obra de Chichico apresenta uniformes de diferentes faixas etárias e classes sociais. É delicioso ver as meninas em trajes esportivos, sob os olhares das freiras educadoras, com os pezinhos descalços com meias. Mas, talvez o registro mais impressionante de crianças uniformizadas na obra de Chichico a fotografia (exposta no corredor) em que vemos dezenas de meninas espartanamente enfileiradas, com imensos laços na cabeça, camisas brancas com gola de marinheiro, gravatinhas e saias pregueadas. As imagens escolares participam da divulgação da imagem de Diamantina como “Atenas do Norte” e o “apreço pela educação e a construção de uma sociedade ilustrada”, como afirma Dayse Lúcide Silva Santos no texto publicado no catálogo da exposição.[11]

 

Desfile de grupo escolar; à esquerda, a antiga igreja de Santo Antônio, antes de ter sua posição arquitetônica alterada para a conformação atual. Diamantina, MG, 1924 (Chichico Alkmim/Acervo IMS)

 

Outra categoria de uniforme que chama atenção nas fotografias de Chichico Alkmim é a militar. São várias, mas gosto especialmente do par de imagens abaixo, publicado no catálogo nas páginas 48 e 49. Do lado esquerdo, o disciplinado oficial com calças culote e botas de montaria. E o recorte da calça não pode passar despercebido. Mas o bigodudo do outro lado é irresistível.

 

1. Membro do 3° Batalhão da Polícia Militar. Diamantina, MG, c. década de 1920 (Chichico Alkmim/Acervo IMS) 2. Diamantina, MG, s.d. (Chichico Alkmim/Acervo IMS)

Na verdade, não é muito claro se ele está vestido de uniforme militar. Alguma coisa no tom da sua roupa, na sua postura e no cinto nos transmite um certo ar de militarismo. Porém, quando comparamos sua aparência com outros registros de indumentária militar vemos que suas roupas não estavam plenamente de acordo com o padrão do uniforme. Há algumas razões para isso. Primeiro, sua blusa não é tão justa, o ombro está deslocado, sobra tecido nas cavas e nos braços. Não é uma camisa social, tem apenas três botões e a carcela[12] é visível acima da calça. O outro ponto são os amuletos pendurados no cinto, e o próprio cinto, apesar de ser um item do uniforme militar, lembra a estética exuberante do cangaço.[13]

Também são interessantes as fotografias que mostram os conjuntos musicais da cidade. Há conjuntos de músicos civis, religiosos, e militares.

Membros da jazz band da Polícia Militar: da esquerda para a direita, em pé, Washignton Parães dos Santos (saxofone), Sigismundo Lopes de Figueiredo (clarineta), Sebastião José de Paula (contrabaixo), Agenor Alves de Deus (bandolim); sentados: Arnulfo Lisboa (trompete), Boanerges Apolônio de Meira (banjo), Jair Emídio Ferreira (trompete). Diamantina, MG, s.d. (Chichico Alkmim/Acervo IMS)

 

É conhecido o gosto do diamantinense pela música, e uma crônica de Carlos Drummond de Andrade publicada no Jornal do Brasil no dia 19 de outubro de 1972, e incorporada à mostra (na sala “Caixinha de música”, abrigada na Pequena Galeria) confirma essa paixão: “entre outras excelências, povo de Diamantina é povo que canta, e isto significa riqueza de coração”.[14] Na fotografia da jazz band da Polícia Militar está um senhor muito elegante, Washington Parães dos Santos, o saxofonista. É o único que usa terno escuro. Washington também está em outra fotografia (na sala “Nosso rosto”, ao lado de uma mulher muito bonita, provavelmente sua esposa. Nesse retrato, de novo portanto paletó escuro com risca de giz, ele usa um prendedor de gravata em formato de tesoura. Tudo nos leva a crer que Washington, além de músico, era alfaiate, ou, mais especificamente, cortador. (Será por isso que ele se destaca da banda da Polícia Militar, porque não era militar, mas um civil?)

Diamantina, MG, c. década de 1930 (Chichico Alkmim/Acervo IMS)

 

A fotografia da Alfaiataria Americana de João Antônio Ribeiro, possivelmente da década de 1930, exibe (na sala “O ateliê lá fora”) uma oficina de alfaiate e seu quadro de empregados, tradicionalmente dispostos diante do ateliê.

Alfaiataria Americana, de João Antônio Ribeiro. Diamantina, MG, c. década de 1920 (Chichico Alkmim/Acervo IMS)

Assim como este retrato, gravuras do século XVIII também apresentam a oficina do alfaiate como uma sala grande e arejada, com muita luz natural, lembrando-nos da necessidade de uma boa iluminação para o trabalho de costura, e da importância da acuidade visual e do tino para as relações sociais. Pelo costume antigo, o ateliê do alfaiate é organizado em níveis hierárquicos. Na fotografia, vemos três: o cortador, os oficiais e os aprendizes. O cortador é a figura mais importante da alfaiataria. É ele quem toma a medida do cliente, corta o tecido e faz as provas do traje. Aqui, é fácil reconhecer quem é o cortador, o homem elegante de pé na porta do meio, abaixo do número e da placa que diz: “Alfaiataria Americana de João Antonio Ribeiro. Acompanha a moda”. Além de ocupar um lugar central na fotografia, o que já é uma pista da relevância da sua função, ele segura uma tesoura na mão direita e porta uma fita métrica ao pescoço, símbolos do cortador que é, afinal, a peça chave do ateliê.

Nosso cortador está muito bem vestido, assim como todos os empregados desta alfaiataria, o que os aproxima dos clientes e é positivo em termos de propaganda para a oficina do alfaiate. O sucesso da alfaiataria dependia, e ainda hoje é assim, do cortador, que deve dominar o corte do tecido e as diversidades imprevisíveis dos corpos, além, é claro, de estar sintonizado com as novidades estéticas em termos de vestuário.

Seguindo a hierarquia, depois do cortador estão os oficiais, também chamados cortadores de forros. Normalmente jovens, aos oficiais cabem as atribuições dos aviamentos, ou seja, o corte dos forros, pregar botões e galões. O terceiro nível hierárquico da oficina deste alfaiate é ocupado pelos aprendizes, encarregados dos retoques. A eles compete fazer alinhavos, acolchoados, pregar botões e galões e, também, desmanchar e consertar os defeitos.

Como podemos ver, a fotografia respeita a hierárquica distribuição de funções que concerne à técnica da alfaiataria. A cena é pensada e expõe a tradicional organização do ofício do alfaiate. O quadro de empregados está disposto, literalmente, em três níveis distintos: o cortador, centralizado, no plano superior; os oficiais, logo abaixo do cortador; e os aprendizes, quase crianças, hierárquica e espacialmente inferiores, colocados de pé ao rés-do-chão.

O sucesso de um alfaiate e de seu ateliê estava associado às camadas dominantes. Além da cena cuidadosamente montada, organizada de acordo com as atividades características do ofício, ou seja, o mestre ao centro, rodeado de seus oficiais e aprendizes, a fotografia foi concebida como um cenário enriquecido por objetos que reafirmariam a tradição e a qualidade da Alfaiataria de João Antônio Ribeiro. Acrescente à tesoura e à fita métrica já mencionadas, associadas à figura do elegante cortador, oficiais e aprendizes que seguram paletós alinhavados, trajes ainda inacabados e peças desmontadas. A elegância e a beleza dos manequins reforçam o conjunto. Estamos diante dos principais estágios da manufatura: medir, cortar, costurar, exibir.

Entretanto, não podemos deixar de observar alguns elementos que quebram a hierarquia estabelecida pela composição das pessoas no quadro. O negro, na porta à direita, que também segura uma peça alinhavada. Bem vestido como os oficiais, de colete e gravata, ele está, de certa forma, escondido. E as duas crianças maltrapilhas. Um deles, bem na frente, foi flagrado em movimento, o que acentua seu aspecto um tanto fantasmagórico. O outro, que mal cabe no enquadramento, atrás de um dos oficiais, olha para a câmera como se fizesse parte da dinâmica de trabalho do ateliê.

Diante de um conjunto tão bem arrumado, é difícil imaginar que Chichico não tenha tido a oportunidade de afugentar esses meninos do arranjo da foto. Ao contrário, por mais que não estejam prescritos na tradicional iconografia da técnica do alfaiate, fica a sensação de que Chichico se divertiu com a presença imprevista dos garotos, que romperam com a rigidez da cena.

É intrigante o epíteto “americana” da Alfaiataria de João Antônio Ribeiro, pois a norma da indumentária masculina, principalmente nas décadas iniciais do século XX, liga-se à tradição inglesa do corte ajustado. Sabemos, porém, que os Estados Unidos exportavam roupas prontas masculinas e trajes de banho para a América do Sul desde a década de 1920. Estaria a Alfaiataria de João Antônio Ribeiro atrelada à moda masculina norte-americana ou à moda americana brasileira?

Diferente do inglês, o visual americano é, no contexto da tradicional técnica da alfaiataria, menos formal, o que na roupa se traduz em modelagens levemente mais amplas do que as britânicas, relacionadas à vida prática e agitada do homem de negócios, ágil e versátil.

Na década de 1930, embora a ênfase de Hollywood recaísse sobre os trajes femininos, a indústria do cinema fez muito para reforçar e moldar as atitudes para com o vestuário masculino, e o primeiro cinema de Diamantina fora inaugurado em 1906, na rua Campos de Carvalho.

Assim como o público feminino estudava o estilo das atrizes, muitos homens buscavam dicas sobre roupas em grandes astros, como Cary Grant e Gary Cooper. O paletó tinha ombros largos (com ombreiras mínimas) e um bolso no peito. Era cinturado e razoavelmente justo nos quadris. O colete era curto, com seis botões e abertura em V, do tipo usado pela maioria dos oficiais retratados na fotografia. As calças tinham cintura alta e corte folgado, com pregas duplas e barra italiana, e eram sustentadas por suspensórios. Apesar de no início haver certa resistência ao corte folgado, os homens gradualmente passaram a apreciá-lo por causa do conforto e comodidade.

A cena ilustra a distinção do alfaiate e a harmonia no trabalho, almejando uma clientela rica, de elite. A arte da alfaiataria era uma prática bastante socializada. O cinema e a moda contribuíam para a modernização da cidade e a elevação de status de uma elite que desejava avidamente afastar-se do estigma do atraso. O talento do alfaiate residia na habilidade pessoal que requeria conhecimentos técnicos de corte e materiais, habilidade com que conseguiam conformar os diversos tipos físicos à elegância prescrita pela moda, ou ainda, pelo gosto com que sugeriam as escolhas das formas e padrões de tecidos.

A exposição das fotografias de Chichico Alkmim – e, consequentemente, o catálogo da exposição – acabam por funcionar como um repertório de formas para os criadores de moda brasileiros. Por meio da obra de Chichico é possível recensear texturas, cortes, materiais, estampas, combinações, recortes, modos de vestir, botões, alfinetes, golas, decotes, volumes, joias, chapéus, meias, sapatos, bordados, rendas, cintos, uma ampla série de possibilidades de criação a partir de uma substância intrinsecamente brasileira.

Carolina Casariné professora de história da indumentária e da moda, doutoranda no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ, onde desenvolve a pesquisa O guarda-roupa modernista, em que analisa a aparência de Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e Mário de Andrade.

[1] Conforme Maria Cristina Volpi, indumentária é o “sistema vestimentar formal e normativo de uma sociedade, formado por elementos que compõem a aparência vestida” (in.: “As roupas pelo avesso: cultura material e história social do vestuário”. 9o Colóquio de Moda, 2013, Universidade Federal do Ceará. A moda, por sua vez, é um conjunto de valores, faz parte da indumentária, mas existem roupas para além da lógica da moda, como as roupas dos padres ou os uniformes militares.

[2]Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, p. 25.

[3]Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas, v. 1. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7a edição, 10a reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 95.

[4] Aqui, faço referência ao capítulo “Approaches using visual analysis of photography and film”, de Lou Taylor, professora de História do Vestuário na Universidade de Brighton, publicado no livro The study of dress history. Oxford: Manchester University Press, 2002, p. 150-192.

[5] “Diamantes, vidro, cristal”. FERRAZ, Eucanaã. (Org.). Chichico Alkmim, fotógrafo. São Paulo: IMS, 2017, p. 7-23. A citação está na página 19.

[6] “Calma, beleza, simplicidade”. FERRAZ, Eucanaã. (Org.). Chichico Alkmim, fotógrafo. São Paulo: IMS, 2017, p. 25-33.

[7] FERRAZ, Eucanaã. Op. cit., p. 7.

[8]Ibidem, p. 8.

[9] Era bastante comum nas cidades brasileiras os estúdios temporários de fotógrafos itinerantes.

[10] Faço referência ao texto de Elvia Bezerra, “O anfitrião de Chichico”.

[11] “O que é visto merece ser evocado”. FERRAZ, Eucanaã. (Org.). Chichico Alkmim, fotógrafo. São Paulo: IMS, 2017, p. 35-43, citação na página 38.

[12] A carcela é uma tira de tecido costurada de modo a dar acabamento à vista, ou patte, da camisa.

[13] Sobre a indumentária usada pelo grupo liderado por Lampião, ver o livro de Frederico Pernambucano de Mello: Estrelas do couro: a estética do cangaço. 3a edição. São Paulo: Escrituras Editora, 2015.

[14] Disponível no site Brasiliana Fotográfica.