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Drummond, sem adjetivos inúteis

29 de outubro de 2014

A biblioteca de Carlos Drummond de Andrade é uma mina, não de ferro como a que havia no Pico do Cauê, mas de ouro. E o que ela nos diz? Muitas coisas. A mais óbvia: os livros que você reúne espelham suas predileções, portanto, dão indícios de quem você é. Depois, um livro nunca é órfão. Exemplares têm nome, sobrenome, filiação, data, contexto. Livros têm história.

No caso da biblioteca de Drummond, a preciosidade se manifesta de várias formas. Primeiro por pertencer a um dos maiores poetas em língua portuguesa. Nem um livro a menos, nem um livro a mais: o que tem ali (o que temos aqui, na Reserva Técnica Literária do Instituto Moreira Salles, catalogado e disponível para consulta) é o reflexo das escolhas de Drummond. São cerca de quatro mil títulos reunidos ao longo de 87 anos de vida.

A preciosidade vai além quando lemos as dedicatórias que há em alguns exemplares. A partir dessas inscrições, o livro deixa de ser objeto encontrável em qualquer livraria e adquire status de único. Elas nos permitem imaginar a relação existente entre o dedicador e o dedicatário e fabular a partir da troca das palavras de afeto. Sobretudo, as dedicatórias revelam traços alheios ao conteúdo da obra.

(Importante ressaltar que Drummond foi um dedicador contumaz. Possuía três caderninhos em que, de forma empenhada e compulsiva, reproduzira inúmeras dedicatórias feitas a amigos, muitas delas incluídas na pequena maravilha que é Viola de bolso (1952). Em 2011, o Instituto Moreira Salles publicou Versos de circunstância, reprodução fac-similar desse material.

Alguns anos antes da publicação de Viola de bolso, especificamente em março de 1943, Manuel Bandeira escreve a Alphonsus de Guimaraens Filho sobre a ideia de difundir uma “coleção de poemas onomásticos” como “simples brincadeiras ou palavras de afeto aos amigos e às amadas”. Essa declaração e, posteriormente, a publicação de Mafuá do malungo confirmariam que o projeto de Bandeira foi levado à frente e de forma bem-sucedida. Seriam os caderninhos de versos circunstanciais de Drummond parte do projeto do poeta de Pasárgada?)

Graças aos sebos, hoje em maior número virtuais que físicos, é possível encontrar, por exemplo, a primeira edição do livro de contos Insônia (1947), de Graciliano Ramos. No entanto, Drummond é felizardo por possuir um exemplar com dedicatória exclusiva.

 

Dedicatória de Graciliano Ramos a Carlos Drummond de Andrade em Insônia (1974). Biblioteca Carlos Drummond de Andrade / Instituto Moreira Salles

 

A dedicatória em Insônia guarda uma pequena complicação: não sabemos se Graciliano considera “última encrenca” por ser o último livro que publicaria em vida ou se era a “última” obra daquela série de envios a Drummond. O autor, além de Insônia, enviara ao poeta outros quatro títulos publicados em janeiro de 1947 pela Editora José Olympio: Caetés e Vidas secas, ambos em segunda edição, e São Bernardo e Angústia, estes em terceira edição.

Destacam-se as dedicatórias em Caetés: “Meu velho Carlos: Isto é uma droga, mas foi necessária a reedição. Abraço. Graciliano Rio – 1947”; e em Vidas secas: “Ao Carlos, sem adjetivos inúteis. Graciliano Rio – 1947”. Nessa última, especificamente, chama atenção a ausência da estrutura tradicional da dedicatória: Para Fulano de Tal, com Y, local, data e assinatura. E é Graciliano quem surpreende ao não atribuir adjetivos – seriam inúteis mesmo – a Drummond.

Pouco antes, em 1945, Graciliano enviara a Drummond um volume de Infância com a seguinte dedicatória: “A Carlos Drummond de Andrade, o mais espinhoso de todos os amigos, com um abraço difícil do Graciliano. Rio, 1945”. Aqui parece que o “homem” Graciliano, de forma desarmada, se reconhece no “homem” Drummond.

De modo geral, as dedicatórias de Graciliano Ramos são fiéis ao seu estilo: secas e sólidas.  Nelas nota-se uma ponta de autocomiseração e modéstia, semelhante à que se flagra em sua vida pessoal. O mesmo tom pode ser encontrado numa carta de novembro de 1937 enviada a Raúl Navarro, tradutor de sua obra na Argentina: “Os dados biográficos é que não posso arranjar, porque não tenho biografia. Nunca fui literato, até pouco tempo vivia na roça e negociava. Por infelicidade, virei prefeito no interior de Alagoas e escrevi uns relatórios que me desgraçaram. Veja o senhor como coisas aparentemente inofensivas inutilizam um cidadão”. Os relatórios a que se refere Graciliano Ramos dizem respeito àqueles escritos durante sua gestão como prefeito do município de Palmeira dos Índios, em Alagoas. Os documentos atraíram a atenção do editor Augusto Frederico Schmidt que publicaria, em 1933, o primeiro livro de Graciliano, Caetés. Começava assim a carreira do romancista alagoano.

Outro dedicador que sobressai na biblioteca drummondiana é Manuel Bandeira. É sabida a relação afetuosa que havia entre esses dois grandes poetas. Se Drummond estivesse vivo, certamente nos teria repreendido o uso do adjetivo “grande” tal como fez com Zuenir Ventura, em entrevista publicada na revista Veja, em 19 de novembro de 1980, na qual rebate a proposição de ser o maior poeta em língua portuguesa com uma pergunta bem-humorada: “você já mediu?”.

Nas dedicatórias de livros a Drummond, percebe-se a admiração de Bandeira: “A Carlos, poeta da minha inveja”, escreveu ele no exemplar de De poetas e de poesia (1954), livro em que reúne textos críticos. Em outro exemplar, desta vez de Poesia e vida de Gonçalves Dias (1962), Bandeira parodia os conhecidíssimos versos do poema “Canção do exílio”: “Minha terra tem um poeta / melhor que na Europa os há; É Carlos Drummond de Andrade, o maior dos que há por cá; Quando lhe dá na veneta / Canta mais que um sabiá. Manuel junho 1962”.

Para ratificar a admiração mútua entre o mineiro e o pernambucano, vale mencionar que há, no Arquivo de Décio de Almeida Prado, um manuscrito do belíssimo poema de Carlos Drummond de Andrade a Manuel Bandeira, “A M.B.”. O poema constaria de Viola de bolso (1952) sob o título “Declaração a Manuel”. Bandeira dá-lhe o troco afetuoso na segunda edição de Antologia poética (1963). Na folha de rosto do exemplar da biblioteca de Drummond, Bandeira dedica: “Ao Carlos esta 2º edição da Antologia, onde pela 1ª vez aparece em livro a balada livre em que te celebrei como homem, poeta e amigo – da melhor forma que pude. Com um abraço Manuel 1963”. Eis o poema:

Louvo o Padre, louvo o Filho,
O Espírito Santo louvo.
Isto feito, louvo aquele
Que ora chega aos sessent’anos
E no meio de seus pares
Prima pela qualidade:
O poeta lúcido e límpido
Que é Carlos Drummond de Andrade.

Prima em Alguma Poesia,
Prima no Brejo das Almas
Prima em Rosa do Povo,
No Sentimento do Mundo.
(Lírico ou participante,
Sempre é poeta de verdade
Esse homem lépido e limpo
Que é Carlos Drummond de
Andrade).

Como é o fazendeiro do ar,
O obscuro enigma dos astros
Intui, capta em claro enigma.
Claro, alto e raro. De resto
Ponteia em viola de bolso
Inteiramente à vontade
O poeta diverso e múltiplo
Que é Carlos Drummond de Andrade.

Louvo o Padre, o Filho, o Espírito
Santo, e após outra Trindade
Louvo: o homem, o poeta, o amigo
Que é Carlos Drummond de Andrade.

Para comemorar os 80 anos de Bandeira, a Editora José Olympio lançou Estrela da vida inteira, reunião dos dez livros de poesia publicados entre 1917 e 1960, e Andorinha, andorinha, seleção de textos em prosa, organizados pelo amigo Carlos Drummond de Andrade. O que justifica a dedicatória em seu exemplar: “A Carlos querido, sem o qual estas andorinhagens não viveriam nunca em livro, a infinita gratidão do Manuel. 1966.”

 

Dedicatória de Manuel Bandeira a Carlos Drummond de Andrade em Poesia e vida de Gonçalves Dias (1962). Biblioteca Carlos Drummond de Andrade / Instituto Moreira Salles

 

Dedicatória de Manuel Bandeira a Carlos Drummond de Andrade em Andorinha, andorinha (1966). Biblioteca Carlos Drummond de Andrade / Instituto Moreira Salles

As dedicatórias de Cecília Meireles também se destacam. Na folha de rosto de Metal rosicler (1960), a poeta escreve: “A Carlos Drummond de Andrade, este metal modesto, mas que não é ‘o vil’… Com a estima da Cecília 1960”. A dedicatória evoca a expressão “vil metal”, muito usada para se referir ao dinheiro. Nesse sentido, Cecília tem razão: não apenas Metal rosicler, mas livros, de um modo mais amplo, não – nunca – são vis.

 

Dedicatória de Cecília Meireles a Carlos Drummond de Andrade em Metal rosicler (1960). Biblioteca Carlos Drummond de Andrade / Instituto Moreira Salles

Há outra inscrição no livro Obra poética: “A Carlos Drummond de Andrade, com os nossos quinhentos anos de parentesco (ou vizinhança), de desencontros pelos mares, e de encontro na poesia brasileira – com os mesmos cinco séculos de cordialidade – afetuosa lembrança Cecília Meireles – 1964”. O livro foi publicado em 1958, mas de acordo com a data grafada, somente foi dedicado a Drummond em 1964, ano de morte de Cecília. A alusão aos “desencontros pelos mares” explicaria as diferenças entre as datas de publicação e de dedicatória? Ainda em 1964, Cecília publica Ou isto ou aquilo, livro de poemas que se tornou um dos mais significativos em sua obra e no cenário da produção literária infantil. No exemplar de Drummond, escreve: “Carlos: faça parar a chuva, por v[ocê] inventada, e venha ver esta sua amiga, meio abandonada! Cecília”. A graciosa dedicatória traz ecos do divertido poema drummondiano “Caso pluvioso”, publicado em Viola de bolso.

Vê-se, por meio das dedicatórias, a relação de Drummond com seus pares e admiração que estes manifestavam pelo poeta, ora pela exaltação das qualidades do poeta mineiro, como faz Bandeira, ora pela ausência dos adjetivos pomposos, como prefere Graciliano. De um modo ou de outro, 31 de outubro, o Dia D, que o Instituto Moreira Salles reservou para celebrar o aniversário do poeta, tornou-se um marco de celebração da figura que carrega no nome e na produção literária a glória de ser universal.

 

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